quarta-feira, julho 29

Sprint II - Janela

Para abrir a janela, empurrei com o pé, pois esta é uma das vantagens de se ter a cama embaixo da janela. Se não é, deveria ser.

A fresta apareceu, e o vento de mínimas temperaturas empurrou a luz pra dentro do quarto, me fazendo apertar os olhos e encolher mais entre as cobertas. Enquanto sentia o cheiro do frio, prédios de Beagá tomavam forma diante de mim, como quando ligamos TV antiga. Há 15 anos atrás, fizera um movimento parecido, quando ainda desconhecia esta cama.

O azul saturado do céu era o mesmo, o vento também, frio. Ainda sonolento, abri a cortina do ônibus, e ainda não havia entendido o que esperar de Belo Horizonte. Na época ainda a chamava de forma respeitosa, pelo nome e sobrenome. Apertei momentaneamente os olhos, encolhi um pouco dentro do meu casaco. Mas logo, a pupila acostumou, os músculos descontraíram, e quando abri os olhos novamente, respirei novo ar. Diferente sim, mas digesta. Ainda assim, continuei sem saber o que esperar.

Felizmente. Dizem que quando criamos expectativas sobre as coisas, os acontecimentos, as pessoas, acabamos por ter desilusões. Quanto mais expectativa, mais monstra a desilusão.

Me foi agradável. Muito mais. E isso também foi inesperado, uma vez que deixava a minha infância e pré-adolescência, meus amigos, enfim, a minha vida inteira até aquele momento para trás. Nasci e cresci em Brasília. Tudo que eu entendia do mundo estava ali. As dinâmicas sociais, as interações interpessoais. O ar e a minha vida material áridos. Depois entendi que não sentia falta de Brasília porque não havia do quê sentir falta. A parte mais importante da minha vida estava vindo comigo, a família. E as coisas que passamos juntos, ainda continuávamos. Falta, só de acontecidos. Da vida, não.

"Mariam parou numa esquina e ficou olhando os passantes, sem conseguir entender como podiam ser tão indiferentes diante de todas aquelas maravilhas que os cercavam".

Fui ao centro da cidade, e tive dúvidas se as ruas nomeadas com nomes dos Estados Brasileiros era uma organização de fato. Eu cheirava a CK One, e com o frio, me sentia um sorbet de limão andante. Na ocasião, quando saí da rodoviária, achei a idéia genial. Bastava desenhar o mapa do Brasil na cabeça, e nunca mais você se perde! Pois assim, a caminho de um recomeço (ah, se eu soubesse...), estava conhecendo não só uma cidade nova, mas o país inteiro. Hoje em dia, eu sei que nos perdemos com ou sem mapas.

Foi lá também que os despertadores chineses entranhados na calçada me clamavam para uma nova vida. "Acorde, garoto. Acabou a brincadeira". Acabou sim, mas a diversão acabara de começar. Diferente da estática burocrática de um distrito federal, a vida permeava pelas ruas sob forma de muitos ônibus e mais carros ainda. Por mais sujo que o chão poderia ser, e o era, o céu azul ainda continuava limpo e lindo. E permitia o sol iluminar o caminho. Foi esta a primeira vez que senti ter feito o certo.

***

Então, era a cidade grande. Cidade grande, com sotaque de Chico Bento. A primeira vez que ouví-los conversar, achei tratar-se de uma grande brincadeira. “Ninguém fala assim... A não ser personagens de quadrinhos e caricaturas”. Pois não era brincadeira, para a minha diversão. Hoje, eu só acostumei.

"Era a primeira vez que Mariam tomava sorvete e nunca teria imaginado que o paladar pudesse experimentar tantas surpresas. (...) Ficou encantada com a textura fascinante, com a doçura aconchegante daquilo tudo".*

Não tinha luzes de néon, nem glamour decadente nas ruas. Mas tudo era novidade. E esta sensação perdurou por anos. Talvez por eu buscá-la com afinco. A signicância desta cidade vai além da sua população e de sua área. As “primeira”s é que eu conto, e estas, eu perdi a conta.

Primeiro carro. Primeira paixão. Primeiro trabalho, primeiro salário. Primeiro beijo (apaixonado). Primeiro trago. Primeira navegação a 28.800. Primeiro e-mail. Primeiro passaporte, primeiro vôo só. Primeiro terno, e a sua gravata. Primeira rúcula com tomate seco e mussarela de búfava. Primeiro Malbec. Primeira tatuagem (ainda na primeira). Primeira saudade de casa, primeira vontade de sair de casa. Primeira desilusão amorosa. Primeira cueca nova (não, essa é brincadeira!). A primeira vez.

Funciona mais ou menos assim: a cada primeira vez, é como se uma nova janela se abre, mostrando novas e outras possibilidades àquela unidirecional que se estabelece com o passar do tempo. Primeiras vezes areja a vida e muda a paisagem, instiga. Assim como cheiro-verde, pode amargar eventualmente, mas na maioria das vezes, veste frescor no sabor e na cor. E depois de experimentar, parece que falta um o quê na comida quando não está lá.

Faço o que tenho que fazer pelos Estados afora, países estrangeiros, e retorno quando o céu é púrpuro. Retorno para casa. A minha casa. Fecho as janelas e escuridão se faz. O céu ainda será azul amanhã.

*Trechos do livro "A cidade do Sol", de Khaled Hosseini.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bom,KJ. Demonstrou toda a sua sensibilidade. Coisa de macho! Abraço!