domingo, outubro 12

Je vais faire des canons!

Mas a primeira versão que escutei da estória foi que Jean levantou um dia da cama em 1935 e resolveu fazer canhões. Alimentava a guerra, e devido à delicadeza de suas transações, escolheu um lugar abrigado, de difícil acesso. Equivocada estória, logicamente. Se em 1817 ele tinha 28 anos, façam a matemática. Foi justamente neste ano que ele chegou em São Miguel de Piracicaba, e resolver armar a festa. Monsieur Dissandes bombou tanto o lugar, que o lugar resolver se renomear. Prevendo já o bafafá que seria continuar com o nome completo do garçon (rapaz em francês, meu Deus!), galera resolveu simplificar:

- Cê é de onde?
- Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade...
- Desculpa, perdi a parte depois do "J".
- Ahn.. Vai João Monlevade mesmo...

E o quê foi que ele fez, afinal de contas, para merecer tamanha homenagem? Fez o primeiro croissant de Minas Gerais. NÃO!.. Ele fecundou a empresa que hoje é um dos grupos mais fortes em siderurgia do mundo. E como não podia deixar de ser, lá vem os frangos xadrez meter as asas no enriquecimento das (não tão) nossas corporações... E novamente, adivinha quem chegou na área pra botar ordem na granja? É isso mesmo...

Longe de ser longe (pelo menos), Monlevade é um velho conhecido, mas sempre foi apenas o Posto Graal, a primeira e, às vezes, a última parada para minhas buscas por águas salgadas. Monlevade é o fim das curvas inesperadas e o início da liberdade; é a pipoca de microondas sabor queijo, cheiro que impregnou no ônibus até chegar na Bahia; o alfa e o ômega de minhas viagens rodoviárias. Mas bastou eu me adentrar na cidade, a lembrança de música caipira em repeat se dissipou da minha cabeça.

Diferente dos destinos anteriores, a cidade tem muito mais do que posto de gasolina, padaria e butecos. Civilização, finalement! Imaginem, tem uma distribuidora da Ambev de cara para o hotel, com pilhas e pilhas de cerveja! E se eu bebesse cerveja, não ia adiantar nada, já que é só um centro de distribuição, e não um mega buteco. Mas a parte de meu interesse (a usina) se encontra pendurada em um terreno catastrófico, pois dizer acidentado seria amenizar a crise. Para se chegar a ela, passamos por um lado do vale. Do outro, simétrico, uma ruazinha com casinhas coloridinhas. Pois essas casinhas coloridinhas são a versão original de São Miguel de Piracicaba, o arraial que abrigou Jean em sua chegada. E a ruazinha termina numa construção menos bonitinha, mas muito mais suntuosa. Segundo o Dr. Google, a Matriz São José do Operário é a única igreja do mundo construíto em forma de V. Dizem que também para caber todos da vila dentro (na época, né?). Abraça a vila uma vegetação bem alta. E eucaliptos dispostos randomicamente e densamente em costas íngrimes davam um o quê de paisagem temperada, um toque canadense ou francês, quiça.

A verdade é que eu não sei o motivo de eu encher tanta lingüiça até agora. Sobre o almoço que eu queria falar. Comida, como sempre. Mentira. A comida foi muito normal, considerando que o nosso anfritião era o gerente geral da planta. Acreditem, o topo da pirâmide come feijão com arroz também. A surpresa é que ele nos recebeu na casa do próprio Jean. Extremamente bem preservada, a casa é um dos motivos de orgulho da empresa. Tem um gramado bonito, plameiras imperiais, tudo muito bem pintado. Um projetista quis derrubar a casa para construir o novo alto-forno no lugar. Hoje em dia, ele trabalha como caixa no Graal. Pudera. Que insanidade move uma pessoa a querer derrubar uma construção de 1818? Mais difícil seria relocar os móveis originais que ainda decoravam o recinto. Pode parecer brincadeira, mas bateu uma consciência cultural em mim naquele momento que não soou nada estranho. Uma sensação parecida com aquela de ter visto os mognos no caminho para Chambourcy, sabe? Achei muito válida a idéia de manter o que temos da nossa História ao nosso alcance, ainda mais quando levamos em consideração quão curta ela é. Praeterita memento.

Pena que a Mãe Natureza não pensa assim. Os mesmos granizos que estabeleceram o caos em Belo Horizonte e arredores, vieram aqui e deram uma porrada no telhado de chez Jean. Granizos bobões. Destruidores de lares.

***

Sentado à varanda do quarto do hotel, meus dedos dançavam freneticamente sobre o teclado. O som da rua ditava o ritmo dos passos, e de repente, acordes familiares me traziam os versos:

"Não precisa procurar, pois é só aqui que existe
Melhores DJ's, Xambioá, Titanic!"

Semicerrei os meus olhos, arrumei o palavrão mais cabeludo que consegui naquele momento... laloplegia.