terça-feira, junho 2

Pode

Minha colheita não tem podão.

Imerso num mar de canas e cheiro de álcool que vem em ondas e marolas, foi apenas um dia desses que consegui presenciar a colheita. Foi também dias passados que, depois de tantos anos feito, assisti "Eu Tu Eles". Sarcástica poesia, o que antes me pareceu depravação moral, no final das contas se mostrou ser uma bonita estória de amor (não tão convencional, devo dizer). O "também" foi pelo cenário em que o filme e eu estamos, não pelo fato de eu ter 3 esposas, quem me dera. Ou não.

Mas na minha colheita não tem podão. No lugar deles, monstros enormes de metal que engolem ruas e ruas de cana e que vomitam a palha que não lhe é digesta. E de suas entranhas, é retirada a cana picada já, em tamanho de um palmo, talvez um pouco maior, já para ser dilacerado e retirado o seu sumo. Não há romantismo, não há a ardência dos amores escondidos, nem da chama que consumia a palha outrora. Agora a lâmina chega sem sentimentos, sem dor, sem cansaço... sem embriaguez. 

Não tem podão, mas tem a mesma luz dourada que o Sol nos envolve, luz que sinto falta quando estou na capital. Aqui tem aquele triste e bonito calor que, não fosse o Velho Chico, estaríamos secos como galhos retorcidos no chão da caatinga. Mas como no filme, a água daqui não presta. Como dizem por aqui,  a água aqui é dura, não doce como deveria de ser. Mas ainda assim, refresca o calor que poderia ser aconchegante, se não fosse forte como abraço desengonçado.

Não tem podão, nem o ritmo que tanto gosto, embalado à zabumba e triângulo. Faz falta, pois o forró é o alívio dos necessitados, a alegria dos sofridos. O forró é o não-trabalho. O forró embala o corpo que ginga, o copo de pinga. E também quisera muitos, nos braços a amada, o amado. Mas no lugar do sopro frouxo da sanfona, tem créis, titanics, mc's... Não tenho ninguém me esperando na janela. Não tenho a doçura do aguardente, nem o amargor do jiló. Só a poeira amarela que levantaria do chão da sala de rebôco.

E nas presenças e ausências de minhas andanças, eu vou assim, construindo minha casa de pau a pique, fazendo um puxado aqui, aumentando uma parede acolá. Tenho a certeza que não pertenço a este lugar, ensaio caminhar outros caminhos, mas acabo voltando e ficando. Até amanhã, até Deus sabe quando. Embriagado pela cana, continuo a amassar o barro com pés cansados. Não é uma eterna construção, isso aqui? Até o dia do nosso fim, em que deixamos a casa do jeito que construímos para quem quiser se adentrar e se sentir aconchegado.

Não tem podão. Mas pode entrar.