segunda-feira, dezembro 22

Beautiful (da série "Reflexões de Natal")

Depois da terceira, caipirinha vira Tang. É benéfico, muito benéfico em vários sentidos. Tem vitamina C, que combate o resfriado, é cicatrizante, ajuda na absorção de ferro no intestino e é essencial na formação de colágeno no nosso organismo. Isso é só o limão. Porque o destilado ajuda na circulação, é vasodilatador, ajudando a combater males coronários. Caipirinha refresca no verão e esquenta no inverno, e como se não bastasse, esta bebida tão nossa, acima de tudo, estreita os laços sociais.

Tesouro nacional, paixão estrangeira, vale 10,00 euros nos melhores restaurantes do Velho Continente. E nós temos a uma distância do próximo buteco. Eu sempre soube, mas não entendia o quê isso significava. Pois saber não quer dizer entender, certo? Precisei de croatas para atiçar a minha compreensão. Está bem, eu confesso... foi da forma empírica. Chegar a este pensamento não foi difícil, pois como disse, não há barreiras para se gostar de uma bebida a 40 graus em graduação alcóolica depois de tomar a terceira dose. Difícil mesmo foi aceitar (no outro dia) que temos o nosso valor material e espiritual reconhecidos no mundo inteiro, mas insistimos em usá-los apenas como copos de visita. Só sai do prateleira quando as visitas chegam. Às vezes, por descuido, servimos a bebida em copos plásticos e sujos, apresentando o que temos de pior. Pintamos o Brasil como se fôssemos a Ruanda em 94, e temos aulas de táticas militares aos 8 anos. E os estrangeiros, ah, pobres estrangeiros! Não sobreviveriam um segundo na selva lá fora. Então os levemos para os nossos shoppings centers, pois uma vez lá, temos certeza que estão "protegidos". De quê? Da violência ou da nossa vergonha?

Mais difícil ainda foi ver que fazemos exatamente a mesma coisa em outras situações, em momentos menos globalizados. Buscamos o valoroso em outras pessoas, outros lugares, quando ele está a um abraço: procuramos risos nas TVs quando nossos amigos estão do nosso lado, carinho e compreensão em estranhos quando nossa família sempre esteve lá quando precisamos, desdenhamos beijos de pessoas queridas por capas de revistas. E tomamos Johnnie Walker quando temos Salinas.

Será que precisamos mesmo do Snoop Doggy para nos falar que somos "beautiful"? Pois é. Também achei que não. Temos que ter cuidado com os copos que usamos ao servir as caipirinhas às nossas visitas. Porque samba, mulata e tiros não pararam lá fora por nada. E valorizemos também os copos que usamos no dia a dia. Se eu estivesse visitando o Brasil, ia preferir os copos de requeijão. Eles são genuínos (não Made in China).

P.S.1: MOMENTO TAMAGOSHI: Os chineses resolveram instalar toldo na casa onde moram em Ipatinga, e solicitaram uma visita técnica do vendedor. Na hora marcada, o senhor se apresenta, tira as medidas, senta e ferozmente faz desenhos numa folha de papel, esboçando transparências e concavidades do que seria o novo abrigo dos asiáticos. Enquanto ele explica o projeto, eu traduzo, apontando o desenho. Em determinado momento, enquanto eu falava sobre as calhas, ele não se contém, e direciona a conversa ao chinês: "sí... acá y acá!".. As feições na minha cara poderiam ser traduzidas desta forma: "?????"... Exatamente em qual momento da História Mundial a Espanha estendeu os seus domínios sobre a China? Quem tiver a resposta, favor me mandar um email. Ainda estou tentando entender a razão de ser do episódio.

P.S.2: Aproveitando o ensejo (sempre o ensejo...), gostaria de desejar a todos um ótimo natal com muita paz, presentes e comida. E que o Ano Novo seja o ano para novas conquistas, novos amores e que todos ganhem na mega-sena. Não querem dividir o prêmio?.. Então vão trabalhar, vagabundos! Temos muito tempo, disposição e oportunidades! É só dizer "sim" ou "não" !

quarta-feira, dezembro 3

Keynes

Eu nunca vou esquecer de uma aula que eu tive no segundo ano - o chamado ensino médio - em Brasília ainda. A aula era de Filosofia, e conversávamos sobre assuntos diversos, ao invés de apenas nos ater ao "Filosofando", de Marilena Chauí. Nesta aula em específico, falávamos sobre o consumo, a sociedade consumista. A fessôra explicava sobre as disposições dos supermercados e dos shopping centers. Fiquei atônito com as revelações. Muito mesmo.

Já pararam para pensar que as compras essenciais sempre ficam no lugar mais distante da entrada principal de um supermercado? Na época, o Carrefour tinha apenas uma entrada, e desta perspectiva, os pães e as carnes ficavam do lado oposto da entrada. Feijão, arroz, óleo e sal, ficavam no final do supermercado. Antes de chegar à sua cesta básica, você tinha que passar pelas meias, cuecas, camisetas, brinquedos, bicicletas, iogurtes e congelados (FHC ainda não era presidente, então ainda eram artigos de luxo), enlatados, desodorantes e shampoos, chocotales e balas, e aí sim, vitaminas e proteínas para todo mundo crescer forte. Os mais preguiçosos talvez ficassem obesos para sempre. Não apenas isso, as gôndolas eram, e ainda são dispostas de maneira tal que os produtos à mão são os de preço mais elevado. Para pechinchar, os consumidores tinham que se abaixar, ou pegar no alto. Pelo porte, eu sempre abaixava, logicamente.

E ela passou para os shoppings centers. Quanta gente, quanta alegria! É muito difícil de se ver luz natural dentro de um shopping. Por outro lado, o templo todo é intensamente iluminado por uma luz que imita o dia. Desta forma, não se preocupa com o tempo passar, nem se percebe se está chovendo ou não, e se alguém deixou a roupa no varal, já era. As escadas rolantes são estrategicamente posicionados distantes umas das outras. Assim, sempre é preciso passar por uma loja a qual produto apetece. E se alguém se rende e entra na loja, geralmente irá se deparar com uma boa conversa. Se não é boa conversa, é bonita ou gostosa. Falando em gostosa, as praças de alimentação. Quanta coisa gostosa!.. É possível dar uma volta ao mundo em cinco minutos, e escolher em que país comer: Itália, China, Japão, Líbano, Pirapora (eu SEI que não é um país!), vai depender do seu apetite. Para os mais nojentinhos, os Estados Unidos. Tudo muito bem iluminado e climatizado.

Até os banheiros. Pois então. O estacionamento do shopping custa R$ 3,60. O Mocha Ice Blend no California Coffee é R$ 6,90. Revista Auto Esporte custa R$ 9,90. Agora... Refletir sobre a Filosofia do Consumo num trono com ar condicionado e ao som de músicas natalinas não tem preço. O ambiente todo é pensado, meu Deus! "Oh christmas treeeeeee, oh christmas treeeee, of all the trees most lovely!", e eu ali, reinando absoluto, bolava novas teorias Keynesianas.

Vulgar? Imagina! Se eu tivesse pulado a parte dos lavatórios, todos iam achar as teorias lindas. Pois agora elas são lindas e reais. Em tempos noélicos, vale pensar um pouco até que ponto somos o quê o meio quer que sejamos e até onde podemos ser nós mesmos. Vale viver a simbologia da data, mas por que dar presentes só no Natal? Até onde os termos religiosos regem a data e são importantes para a mesma? Jesus Cristo existiu mesmo? Não, essa última é brincadeira... (então, é nataaaaaal... by Simone).

Para constar: 1) Eu terminei o café ANTES de entrar, e; 2) Caso a reflexão seja uma opção, ambientes azulejados NÃO são mandatórios.

terça-feira, novembro 11

C

Do shopping center até o meu primeiro destino dava mais ou menos uns dois quilômetros, sendo otimista. O horário estava contado, mas já havia feito isso diversas vezes. Com o passo um pouco mais acelerado, chegaria a tempo sem problema algum. E assim decidi fazer. Tanto tempo sem fazer exercício, né? Seria uma boa oportunidade para acelerar um pouco a circulação.

Ipod no ouvido, o trance a 135 bpm ditava o ritmo dos meus passos. Tum, tum, tum tum... Postura ereta, ombro para trás, presta atenção no movimento dos braços, e o meu tempo foi ótimo! Corpo quente, coração acelerado e o suor começava a brotar da testa. Pausa para o primeiro compromisso, e quase conseguia sentir a endorfina correr pela veia. Meia hora depois, já sentia o corpo um pouco mais frio, mas tinha mais dois compromissos pela frente. Quer saber? Já cheguei até aqui mesmo, vamos seguir a diante... Sem gasolina, sem diesel, sem álcool.

Alguns minutos mais no ambiente refrigerado, e seguia para o meu encontro. Ela queria almoçar na Savassi, e num calor de quase quarenta graus, nos rendemos ao coletivo. Mais uma horinha sentado, conversa vai, comida indiana vem, e a satisfação é geral. Como ela estava com pressa para voltar ao trabalho, opta por um taxi. Por que eu não escolheria fechar a hipotenusa? Tentei, mas algo estava errado comigo.

Tibial anterior e extensor longo do Hálux se encontravam paralisados. Era como se tivesse injetado ácido sulfúrico na área subcutânea. A essa altura, os poucos passos que arriscava me saíram como C-3PO. Eu estava plantado no meio da calçada, as pessoas passavam por mim distraídas pelos seus afazeres vespertinos, não faziam idéia do meu sofrimento. E a verdade me veio como um roundhouse kick no queixo: eu não sei andar.

Congelado no fervilhão urbano, tentei refletir sobre a minha existência, e o quê tinha feito ou deixado de fazer para merecer aquilo. E só consegui chegar a uma conclusão: tinha finalmente chegado à idade do “C”. Sedentário, senil, sentado, serestas (trance uma pinóia!) e cereais, porque nem o intestino funciona direito. O natal chegando, e eu ainda tinha que gastar dinheiro com uma cadeira de rodas para mim. Talvez aproveitasse a oportunidade para comprar um cobertor quadriculado e um gato para ficarem no meu colo, enquanto observo a rua da janela da minha casa fria com cheiro esquisito.

Enquanto me arrastava em direção à primeira alma caridosa que pararia para me acudir, tentava não mais pensar no futuro que me aguardava. Entrei no taxi gemendo dores, e balbuciei alguma coisa próxima do local onde estava meu carro. Meu olhar estava parado no pára-sol. “Que calor, né?”, e eu “Mmm...”. Será que quem tem Unimed paga menos em aparelhos ortopédicos? Eu acho que o cobertor pode ser aqueles que tem em ônibus Cometa, meio cinza com traços azul e vermelho, parece que está em desconto no Varejão das Fábricas... Dou uma passada lá amanhã (de carro). Pensando bem, eu acho que o cheiro esquisito da casa de pessoas idosas vem dessas coisas. Será que a Trousseau tem cobertores quadriculados? Vou ter que parcelar... “São oito e setenta”.

“A corrida deu oito e setenta”, ele repetiu. Perguntei se poderia pagar tudo em moeda, porque a moça da Caixa tinha me pagado os quebrados tudo em pratinhas. Supimpa.

domingo, novembro 2

Támas II - A Peça Perdida

Na cabeceira da mesa, eu fazia algumas anotações, de vez em quando. Do meu lado direito, catorze támas me olhavam atentamente, e do esquerdo, gerentes e engenheiros brasileiros aguardavam por mais instruções. A sala estava sendo iluminado apenas pela gigante projeção da ata de reunião, que não apenas isso, era também as correções contratuais levantadas nesta etapa do projeto. Pensava apenas: "Que ironia do destino, a posição onde eles estão sentados!". O vice-presidente da empresa à minha direita fazia alguns comentários sobre a teimosia dos brasileiros. Apenas concordei com um leve sorriso, e complementei que ele deveria estar acostumado já, uma vez que este era o segundo projeto da empresa chinesa no Brasil. Alguns pesares sim, mas o primeiro foi um sucesso, ninguém tem dúvidas disso. Ele riu, e encostou-se à cadeira.

O gerente brasileiro me chama, e pede que eu confira se o texto em inglês está bom. Li rapidamente, troquei uma ou duas palavras, e pedi que o gerente chinês conferisse mais uma vez. Ante aprovação, o brasileiro se enrola com a formatação final da planilha. Pede minha ajuda, eu dou as instruções.

Parece bobagem, mas o pedido dele condizia com a minha posição de intérprete. Demorei vários anos para entender uma coisa. Intérprete é, em vários momentos, um bote salva-vidas inconsciente. Mesmo que em terras natais, é uma pessoa que pode ajudar nos "serviços gerais". E esses pedidos vêm apenas com a confiança que as pessoas depositam em nós, quando acreditam sermos capaz de resolvê-los. E essa capacidade vem dos pacotinhos.

Por menor que eles sejam, eles são para ser úteis na vida. Algumas pessoas jogam fora os pequenos, ou aqueles que têm papel de embrulho simples. Exibem os de papel brilhante, do tamanho de um sofá. Pois são os simples os mais úteis. É preciso ter um monte de pacotes, pacotinhos e pacotões para ter a coragem, e talvez, sabedoria de estender um pequenininho: "eu não sei fazer", ou "eu não sei te responder". E ainda assim, troca-se um pacotinho vazio por alguns outros muito mais substanciais para a sua coleção.

Pode ser clichê de minha parte, ou até pretensão em comparar a vida a uma viagem. Eu não consigo ver de uma outra forma. Sendo assim, por que não dizer que esses pacotinhos que temos dentro do nosso baú são os lugares que visitamos, as pessoas que conhecemos e os souvenires que compramos nestas visitas? A vida é um passeio, e de cada lugar que paramos, guardamos um pouco. O quê as pessoas não vêem é que não é possível apenas ficar na Paz Celestial, ou transpor Muralhas de Chinas. Também faz parte das viagens perder trens e bagagens, disputar táxis com outras pessoas na voadora (ou o roundhouse kick, do Tiaquinóris) e comer coisas que nem sempre queremos. E são justamente essas coisas que fazem as diferentes viagens serem únicas. Vai juntar pacotinhos iguais para quê? Vender na feira?

Sou terapeuta, conselheiro, negociador, office boy, agente de viagens, nutricionista, distribuidor de bebidas e alimentos, além de motorista e pimp (não venham me dizer que vocês não sabiam disso, seus hipócritas!). Imaginem que uma vez, na mesma cidadezinha de seis mil habitantes, uma manta estrelada cobria o céu, a brisa noturna trazia o perfume do verão, e eis que um táma se aproxima de minha paz:

- Minha cueca sumiu...

Véi...

Talvez seja por falta de tentativas realmente efetivas, mas eu não consigo colocar em palavras a intensidade da minha vontade de socá-lo naquele momento.

- !!!!!!! ????? !!!! HAIN??? (Eu-com-isso???)

- Eu não consigo achar a minha cueca. Pode perguntar para a empregada onde ela deixou?

Eu sou um INTÉRPRETE, seus tamagochis dus infernu! Não trabalho no almoxarifado das cuecas!!!

...

Pôxa, gente. Assim não dá... Mas é sério... Para que raios esse pacotinho vai me servir, afinal? Reabri este várias vezes, de verdade. Algumas vezes depois, eu vi: ouvir e entender antes de agir. E foi assim com diversos outros pacotinhos. Vocês acham que vou ligar se me perguntarem sobre cuecas, meias, ou cinta-ligas hoje em dia? Ou se o táma quer comer peixe, cachorro, papagaio? Pois é. Juntei pacotinhos. Ganhei outros, e herdei os fundamentais. Vez ou outra eu reabro alguns deles. Só para ver se irá ser uma pessoa diferente os fechando. Assim mudamos, assim crescemos, e assim também o nosso baú. O efêmero me conforta.

quinta-feira, outubro 30

Támas I

Sorvi o café quente, mas velho. Veio um gosto de charuto de capa escura, sem a intriga que o bom tabaco traz, apenas o amargor na garganta. Estava de novo na cidade de Jean Dissandes*. Não era meu destino final, todavia. Ainda haveria quilômetros de estrada até chegar em Pouso de Água Limpa (ou Ipatinga, em tupi-guarani). Era uma revisita sim, monsieur, o quê na vida não é? Tentamos constantemente revisitar lugares onde outros já foram, onde nós já fomos, numa tentativa de achar segurança. Pensei na estrada que eu peguei até chegar aqui.

Eu tinha ódio no coração. Muito mesmo. Dizem que todos os sentimentos são cultivados, e este, podem ter certeza que não lhe faltou adubo chinês. Reguei com muita inexperiência, e com inexperiência o fiz. Não tinha pudores, não tinha profissionalismo, me faltou bom senso. Ser intérprete era apenas repetir o dito, conforme conveniência. A China ensaiava no território brasileiro os seus primeiros passos, e não era raro mandar marinheiros em suas primeiras viagens ao exterior. Eles achavam que ainda estavam na China, e mesmo os conscientes que não, queriam se impor. Até o dia que eu percebi que sequer o inglês era falado com facilidade por eles. E EU era a boca e os ouvidos deles. Resultado: catástrofe, lógico!

Tomar conta de tamagochis falsificados (claro, eles são realmente feitos na China!) era carregar uma cruz. E já que a vaca sempre ia pro brejo, resolvi me vingar. Não me orgulho de nada disso, mas que me ajudou a equilibrar emocionalmente, não tenho dúvidas:

- (tamgochi) Olha, não quero mais comer carne, porque tem uma semana que a gente come churrasco todo dia! Pergunta se tem peixe!
- (eu) Vou ver com o garçon se tem... (para o garçon) Moço, a bicha chinesa quer saber se tem peixe para o jantar...
- (garçon, riso contidíssimo) Senhor?...
- (eu) Tá vendo essa bicha aqui do lado? Ele quer saber se tem peixe...
- (garçon, lágrimas se jogando dos olhos) Sim, senhor... O peixe está fresquíssimo, chegou hoje..
- (eu para o táma) Ih, que pena! Só tem bife acebolado e carne de panela...
- (garçon) Os senhores gostariam de pedir alguma coisa para beber?
- (eu) Sim, claro! Dois sucos de laranja, e põe bastante açúcar, porque eles adoram coisa doce!
- (táma, pensando) *&^%^%$@#%@^$&^%*&^*^%&$#^#!!!!
- (eu , pensando) Hahaha! Otário!.... (É genti sacaneando genti...**)

Chega o suco, chega o bife. Péssima idéia, depois conclui. O suco causou um sugar rush nele, e ficou a noite inteira tagarelando sobre o quão ruim a comida brasileira é. E o círculo odioso perpetua.

Outra vez recebi uma delegação enorme. A prefeitura resolveu fazer um jantar para recebê-los, afinal de contas, não é todo dia que uma cidade de seis mil habitantes recebe uma chinesada dessas. Como não podia deixar de ser, sempre tem um engraçadinho querendo aparecer. E na sua diarréia verborrágica, “esqueceu” que eu tinha que traduzir. Nos seus idos com orgulho de recebê-los, nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, honra de ter desbravadores do mundo em sua cidade, blábláblá, ele me pôs um discurso inteiro na mão para traduzir. Agradeceu e olhou para mim:

- Ahn.... Cof, cof... então... ele quis dizer... bom... Todos da cidade estão muito muito muuuito felizes de receber vocês, e que vocês façam bom proveito da estadia, não se acanhem em pedir se precisarem de alguma coisa, e é isso aí.

Olhos orientais sorriam em minha direção, sentindo o calor da hospitalidade brasileira pairando no ar. Audacioso, a matraca ainda perguntou para mim:

- Mas é só isso??..

Eu nem hesitei:

- É porque o chinês é uma língua muito simbólica, dá pra se expressar muito com poucas palavras.

Gravatas e vestidos longos caíram na gargalhada, eu com microfone na mão, firme, acabara de sair de um incidente diplomático com categoria. Está duvidando do que eu disse? Então que aprenda o mandarim, oras!

Incidentes como esse, passei por milhares. Já bati na mesa, já xinguei mães, já ignorei e já falei demasiadamente. Larguei tamagochis no aeroporto e fui para casa. Fiz eles passarem fome, pois seis horas da tarde não é hora de jantar. E essas coisas eu guardei, querendo ou não. São pacotinhos que a gente joga dentro do baú da vida. O quê fazer com esses pacotinhos depois, faz uma diferença tremenda. Tem gente que os joga fora. Outros deixam guardadinhos, ou até colocam numa estante, para mostrar aos outros. Eu resolvi fuçar, revisitar de vez em quando, estes pacotinhos.

Olhem no que deu.

(continua...)

*Vide Je vais faire des canons.
**Os belorizontinos irão entender este complemento.

Colaboração: Márcia Tescarolo

domingo, outubro 12

Je vais faire des canons!

Mas a primeira versão que escutei da estória foi que Jean levantou um dia da cama em 1935 e resolveu fazer canhões. Alimentava a guerra, e devido à delicadeza de suas transações, escolheu um lugar abrigado, de difícil acesso. Equivocada estória, logicamente. Se em 1817 ele tinha 28 anos, façam a matemática. Foi justamente neste ano que ele chegou em São Miguel de Piracicaba, e resolver armar a festa. Monsieur Dissandes bombou tanto o lugar, que o lugar resolver se renomear. Prevendo já o bafafá que seria continuar com o nome completo do garçon (rapaz em francês, meu Deus!), galera resolveu simplificar:

- Cê é de onde?
- Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade...
- Desculpa, perdi a parte depois do "J".
- Ahn.. Vai João Monlevade mesmo...

E o quê foi que ele fez, afinal de contas, para merecer tamanha homenagem? Fez o primeiro croissant de Minas Gerais. NÃO!.. Ele fecundou a empresa que hoje é um dos grupos mais fortes em siderurgia do mundo. E como não podia deixar de ser, lá vem os frangos xadrez meter as asas no enriquecimento das (não tão) nossas corporações... E novamente, adivinha quem chegou na área pra botar ordem na granja? É isso mesmo...

Longe de ser longe (pelo menos), Monlevade é um velho conhecido, mas sempre foi apenas o Posto Graal, a primeira e, às vezes, a última parada para minhas buscas por águas salgadas. Monlevade é o fim das curvas inesperadas e o início da liberdade; é a pipoca de microondas sabor queijo, cheiro que impregnou no ônibus até chegar na Bahia; o alfa e o ômega de minhas viagens rodoviárias. Mas bastou eu me adentrar na cidade, a lembrança de música caipira em repeat se dissipou da minha cabeça.

Diferente dos destinos anteriores, a cidade tem muito mais do que posto de gasolina, padaria e butecos. Civilização, finalement! Imaginem, tem uma distribuidora da Ambev de cara para o hotel, com pilhas e pilhas de cerveja! E se eu bebesse cerveja, não ia adiantar nada, já que é só um centro de distribuição, e não um mega buteco. Mas a parte de meu interesse (a usina) se encontra pendurada em um terreno catastrófico, pois dizer acidentado seria amenizar a crise. Para se chegar a ela, passamos por um lado do vale. Do outro, simétrico, uma ruazinha com casinhas coloridinhas. Pois essas casinhas coloridinhas são a versão original de São Miguel de Piracicaba, o arraial que abrigou Jean em sua chegada. E a ruazinha termina numa construção menos bonitinha, mas muito mais suntuosa. Segundo o Dr. Google, a Matriz São José do Operário é a única igreja do mundo construíto em forma de V. Dizem que também para caber todos da vila dentro (na época, né?). Abraça a vila uma vegetação bem alta. E eucaliptos dispostos randomicamente e densamente em costas íngrimes davam um o quê de paisagem temperada, um toque canadense ou francês, quiça.

A verdade é que eu não sei o motivo de eu encher tanta lingüiça até agora. Sobre o almoço que eu queria falar. Comida, como sempre. Mentira. A comida foi muito normal, considerando que o nosso anfritião era o gerente geral da planta. Acreditem, o topo da pirâmide come feijão com arroz também. A surpresa é que ele nos recebeu na casa do próprio Jean. Extremamente bem preservada, a casa é um dos motivos de orgulho da empresa. Tem um gramado bonito, plameiras imperiais, tudo muito bem pintado. Um projetista quis derrubar a casa para construir o novo alto-forno no lugar. Hoje em dia, ele trabalha como caixa no Graal. Pudera. Que insanidade move uma pessoa a querer derrubar uma construção de 1818? Mais difícil seria relocar os móveis originais que ainda decoravam o recinto. Pode parecer brincadeira, mas bateu uma consciência cultural em mim naquele momento que não soou nada estranho. Uma sensação parecida com aquela de ter visto os mognos no caminho para Chambourcy, sabe? Achei muito válida a idéia de manter o que temos da nossa História ao nosso alcance, ainda mais quando levamos em consideração quão curta ela é. Praeterita memento.

Pena que a Mãe Natureza não pensa assim. Os mesmos granizos que estabeleceram o caos em Belo Horizonte e arredores, vieram aqui e deram uma porrada no telhado de chez Jean. Granizos bobões. Destruidores de lares.

***

Sentado à varanda do quarto do hotel, meus dedos dançavam freneticamente sobre o teclado. O som da rua ditava o ritmo dos passos, e de repente, acordes familiares me traziam os versos:

"Não precisa procurar, pois é só aqui que existe
Melhores DJ's, Xambioá, Titanic!"

Semicerrei os meus olhos, arrumei o palavrão mais cabeludo que consegui naquele momento... laloplegia.

quinta-feira, outubro 2

Danoninho Revolutions - Parte II - 'Everything that has a beginning has an end'

Na condição de homem social, ser mutável, já estava começando a me acostumar com Xambioá. E esta condição de ser mutável é uma droga* mesmo. Primeiro, o calor passa, e a gente até estranha o ar condicionado (quem ligou essa bosta nesse frio?!). Depois, você nem sente os pernilongos te abduzirem toda noite. Só no dia seguinte você repara os estigmas indolores deixados pelo corpo. E pela rua, antes apenas habitantes locais e nada mais, surgem garotas interessantes, aptas a serem convidadas para a Pizzaria do Sassá. Ou o Titanic (vocês PRECISAM ver isso).

http://www.youtube.com/watch?v=giYhl-9WFUI (aumentem o volume e soltem a voz)
http://www.youtube.com/watch?v=pXwetzpFEao (com passos para dançar em casa)

Mas infelizmente, nem tudo são flores. O que antes era uma comida caseira sincera e elogiável, virou uma gororoba tamanha que Pizzaria do Sassá não chega nem perto de ser apelação. Questão de sobrevivência. E por que não com as garotas supracitadas? Só aproveitando o ensejo, ué...

E assim, as correntezas do Araguaia iam levando meu tempo naquele lugar embora. Tudo pronto para partir, e enquanto esperava a balsa para atravessar a fronteira, me deu vontade de ficar. Não pelo calor (tá doido?), não pelas novas-gatinhas-ex-monstras do pedaço, talvez pela beleza do rio, mas principalmente porque eu queria ganhar um barco no concurso!! Imagina poder dar uns rolés no Rio Araguaia nos finais de semana? Passar em frente ao Titanic e ver as gatinhas de biquíni bem pequeno e bundinha empinada (ou empenada?)! Ai ai, maldito velho bebum que passou com a pinga do meu lado. Fiquei tonto só com o cheiro do veneno que ele tinha no copo! Pelo menos a balsa está chegando, e acaba com a insensatez de uma vez...

Novamente, estávamos rasgando a mata a bordo de um Gol POWER. Lembrei que o cenário por aqui quase que foi tirado de Rambo II ou Braddock, o Super-comando (by Tiáqui Nóris, e o seu super roundhouse kick). Paisagem repetida, mas não consegui me cansar de sua beleza. Castanheiras e palmeiras passavam diante dos meus olhos, e meu pensamento estava em Xambioá. De verdade. Sabe... Considerando a possibilidade de voltar para o projeto, que certamente precisariam de um intérprete para a montagem da caixa de engrenagens, pois a presença do supervisor chinês era mandatória: “Já fizeram o convite informal. Será que eu aceito? Não seria melhor pensar nisso quando fosse a hora adequada? Ah, a viagem vai durar duas horas, tenho muito tempo para pensar... Eu acho que não, porque tem aquele outro projeto que já me chamaram... Mas o pessoal também não confirmou ainda”...

E foi assim até chegarmos ao aeroporto. Mas nem mesmo este ataque de suuuper número 6 conseguiu me tirar a gostosa sensação de missão cumprida, e também de descobrir que as pessoas gostaram do trabalho feito. Mas o mais importante mesmo foi descobrir (ou lembrar) que eu gosto mesmo de fazer isso.

*Como assim “droga”, se (quase) tudo fica melhor quando se adapta ao lugar? Pois é, imagina se eu gosto da idéia, e fico perdido numa cidade de 10.000 habitantes para todo o sempre? Imagina se resolvo casar com uma nova-gatinha-ex-monstra, ter filhos, e viver a beira do Rio Araguaia? Agora, imagina se eu gosto da idéia de ficar em Belo Horizonte para todo o sempre? E fechar as portas para Xambioá, Sorocaba, Jaíba, Hong Kong, China... Assustador, não?

segunda-feira, setembro 29

Danoninho Revolutions - Parte I

O cartaz anunciava uma festa no próximo fim de semana. Festa rural, coisa de interior. Além das vaquejadas, ainda haveria um concurso. De quê, não importa. O mais importante eram os prêmios. Para o primeiro lugar, um motor. Um MOTOR! O vice-campeão levaria para casa um gerador. Para os momentos de escuridão, luz. Para os momentos de solidão, TV. Ou choque, já que conceito de diversão é subjetivo. E para o terceiro lugar, um barco, cara. O ouro e o bronze podiam combinar uma sociedade. Ganha-se um prêmio, e também um cumpádi para a pescaria nos fins de semana. Enquanto o riso ainda estava na minha cara, ouço um grito:

- É TU, CHEFÃO!

Dedo em riste, ele apontava para a balsa que se aproximava. O senhor tinha as barbas brancas já, mas seus cabelos estavam pintados de loiro. Em sua mão, um copo de extrato de tomate, com líquido até a metade. E quando ele passou do meu lado, inspirei para confirmar, e logo o cheiro doce e estridente de cachaça me fez ver algumas estrelas. Olhei para o rio a minha frente... o Rio Araguaia. Eu cambaleava levemente, não sei se do calor ou do destilado. Há alguns dias atrás, estava exatamente na mesma posição, do outro lado do rio.


***


Depois que o carro estacionou na balsa, descemos do carro para acompanhar a sua travessia até Tocantins. Meninos brincavam na margem, e duas meninas se refrescavam de roupa na parte rasa. Aparentavam seus treze ou quatorze anos. Eram prostitutas. Meu interlocutor me falava que os policiais da região eram os primeiros a usufruir de seus serviços. “Esta é uma terra sem lei”, me dizia:

- Ra-pái, se andar de moto usando capacete, é capaz de você ser preso!

Ri inadequadamente. Os relatos eram diversos: sobre empresários, sobre políticos, sobre o povo, seus pequenos delitos. Esta era a minha cerimônia de recepção (sem contar o almoço de gala, lógico).

Do lado esquerdo, para onde o rio corria, uma serra compunha a paisagem de forma correta. Há cinqüenta anos, esta serra foi o cenário para a famosa Guerrilha do Araguaia. Os comunistas se escondiam na Serra das Andorinhas quando os militares os caçavam. Sangue, muito sangue...

Nos dias que se seguiram, fiquei mergulhado nesta paisagem histórica, no mínimo. Mas mergulhei no rio também. Fiquei receoso no início, devo confessar, mas não podia perder esta oportunidade. Não podia mais ignorar o fato do Rio Araguaia estar passando na frente da pousada onde estava hospedado. Algumas donas passavam o dia inteiro nas margens do rio lavando roupa, com o sol na cabeça (não é uma Brastemp, mas...), e meninos e meninas pulavam na água para tentar lavar o calor do corpo. Resolvi fazer o mesmo.

Ignorei sacos e garrafas de plástico na margem, e entrei vagarosamente na água morna. Para mim, aquilo valia o mesmo, ou até mais do que um carimbo no passaporte. Era uma viagem para o passado, toda aquela rusticidade. Tomei cuidado com os diversos seres que falavam ter na água, mas que felizmente não apareceram, e o tempo foi passando até que o rio engoliu o dia. Saí da água cansado, cheguei ao meu quarto e tombei. Adormeci com cheiro de Araguaia na pele.