quinta-feira, outubro 30

Támas I

Sorvi o café quente, mas velho. Veio um gosto de charuto de capa escura, sem a intriga que o bom tabaco traz, apenas o amargor na garganta. Estava de novo na cidade de Jean Dissandes*. Não era meu destino final, todavia. Ainda haveria quilômetros de estrada até chegar em Pouso de Água Limpa (ou Ipatinga, em tupi-guarani). Era uma revisita sim, monsieur, o quê na vida não é? Tentamos constantemente revisitar lugares onde outros já foram, onde nós já fomos, numa tentativa de achar segurança. Pensei na estrada que eu peguei até chegar aqui.

Eu tinha ódio no coração. Muito mesmo. Dizem que todos os sentimentos são cultivados, e este, podem ter certeza que não lhe faltou adubo chinês. Reguei com muita inexperiência, e com inexperiência o fiz. Não tinha pudores, não tinha profissionalismo, me faltou bom senso. Ser intérprete era apenas repetir o dito, conforme conveniência. A China ensaiava no território brasileiro os seus primeiros passos, e não era raro mandar marinheiros em suas primeiras viagens ao exterior. Eles achavam que ainda estavam na China, e mesmo os conscientes que não, queriam se impor. Até o dia que eu percebi que sequer o inglês era falado com facilidade por eles. E EU era a boca e os ouvidos deles. Resultado: catástrofe, lógico!

Tomar conta de tamagochis falsificados (claro, eles são realmente feitos na China!) era carregar uma cruz. E já que a vaca sempre ia pro brejo, resolvi me vingar. Não me orgulho de nada disso, mas que me ajudou a equilibrar emocionalmente, não tenho dúvidas:

- (tamgochi) Olha, não quero mais comer carne, porque tem uma semana que a gente come churrasco todo dia! Pergunta se tem peixe!
- (eu) Vou ver com o garçon se tem... (para o garçon) Moço, a bicha chinesa quer saber se tem peixe para o jantar...
- (garçon, riso contidíssimo) Senhor?...
- (eu) Tá vendo essa bicha aqui do lado? Ele quer saber se tem peixe...
- (garçon, lágrimas se jogando dos olhos) Sim, senhor... O peixe está fresquíssimo, chegou hoje..
- (eu para o táma) Ih, que pena! Só tem bife acebolado e carne de panela...
- (garçon) Os senhores gostariam de pedir alguma coisa para beber?
- (eu) Sim, claro! Dois sucos de laranja, e põe bastante açúcar, porque eles adoram coisa doce!
- (táma, pensando) *&^%^%$@#%@^$&^%*&^*^%&$#^#!!!!
- (eu , pensando) Hahaha! Otário!.... (É genti sacaneando genti...**)

Chega o suco, chega o bife. Péssima idéia, depois conclui. O suco causou um sugar rush nele, e ficou a noite inteira tagarelando sobre o quão ruim a comida brasileira é. E o círculo odioso perpetua.

Outra vez recebi uma delegação enorme. A prefeitura resolveu fazer um jantar para recebê-los, afinal de contas, não é todo dia que uma cidade de seis mil habitantes recebe uma chinesada dessas. Como não podia deixar de ser, sempre tem um engraçadinho querendo aparecer. E na sua diarréia verborrágica, “esqueceu” que eu tinha que traduzir. Nos seus idos com orgulho de recebê-los, nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, honra de ter desbravadores do mundo em sua cidade, blábláblá, ele me pôs um discurso inteiro na mão para traduzir. Agradeceu e olhou para mim:

- Ahn.... Cof, cof... então... ele quis dizer... bom... Todos da cidade estão muito muito muuuito felizes de receber vocês, e que vocês façam bom proveito da estadia, não se acanhem em pedir se precisarem de alguma coisa, e é isso aí.

Olhos orientais sorriam em minha direção, sentindo o calor da hospitalidade brasileira pairando no ar. Audacioso, a matraca ainda perguntou para mim:

- Mas é só isso??..

Eu nem hesitei:

- É porque o chinês é uma língua muito simbólica, dá pra se expressar muito com poucas palavras.

Gravatas e vestidos longos caíram na gargalhada, eu com microfone na mão, firme, acabara de sair de um incidente diplomático com categoria. Está duvidando do que eu disse? Então que aprenda o mandarim, oras!

Incidentes como esse, passei por milhares. Já bati na mesa, já xinguei mães, já ignorei e já falei demasiadamente. Larguei tamagochis no aeroporto e fui para casa. Fiz eles passarem fome, pois seis horas da tarde não é hora de jantar. E essas coisas eu guardei, querendo ou não. São pacotinhos que a gente joga dentro do baú da vida. O quê fazer com esses pacotinhos depois, faz uma diferença tremenda. Tem gente que os joga fora. Outros deixam guardadinhos, ou até colocam numa estante, para mostrar aos outros. Eu resolvi fuçar, revisitar de vez em quando, estes pacotinhos.

Olhem no que deu.

(continua...)

*Vide Je vais faire des canons.
**Os belorizontinos irão entender este complemento.

Colaboração: Márcia Tescarolo