domingo, novembro 2

Támas II - A Peça Perdida

Na cabeceira da mesa, eu fazia algumas anotações, de vez em quando. Do meu lado direito, catorze támas me olhavam atentamente, e do esquerdo, gerentes e engenheiros brasileiros aguardavam por mais instruções. A sala estava sendo iluminado apenas pela gigante projeção da ata de reunião, que não apenas isso, era também as correções contratuais levantadas nesta etapa do projeto. Pensava apenas: "Que ironia do destino, a posição onde eles estão sentados!". O vice-presidente da empresa à minha direita fazia alguns comentários sobre a teimosia dos brasileiros. Apenas concordei com um leve sorriso, e complementei que ele deveria estar acostumado já, uma vez que este era o segundo projeto da empresa chinesa no Brasil. Alguns pesares sim, mas o primeiro foi um sucesso, ninguém tem dúvidas disso. Ele riu, e encostou-se à cadeira.

O gerente brasileiro me chama, e pede que eu confira se o texto em inglês está bom. Li rapidamente, troquei uma ou duas palavras, e pedi que o gerente chinês conferisse mais uma vez. Ante aprovação, o brasileiro se enrola com a formatação final da planilha. Pede minha ajuda, eu dou as instruções.

Parece bobagem, mas o pedido dele condizia com a minha posição de intérprete. Demorei vários anos para entender uma coisa. Intérprete é, em vários momentos, um bote salva-vidas inconsciente. Mesmo que em terras natais, é uma pessoa que pode ajudar nos "serviços gerais". E esses pedidos vêm apenas com a confiança que as pessoas depositam em nós, quando acreditam sermos capaz de resolvê-los. E essa capacidade vem dos pacotinhos.

Por menor que eles sejam, eles são para ser úteis na vida. Algumas pessoas jogam fora os pequenos, ou aqueles que têm papel de embrulho simples. Exibem os de papel brilhante, do tamanho de um sofá. Pois são os simples os mais úteis. É preciso ter um monte de pacotes, pacotinhos e pacotões para ter a coragem, e talvez, sabedoria de estender um pequenininho: "eu não sei fazer", ou "eu não sei te responder". E ainda assim, troca-se um pacotinho vazio por alguns outros muito mais substanciais para a sua coleção.

Pode ser clichê de minha parte, ou até pretensão em comparar a vida a uma viagem. Eu não consigo ver de uma outra forma. Sendo assim, por que não dizer que esses pacotinhos que temos dentro do nosso baú são os lugares que visitamos, as pessoas que conhecemos e os souvenires que compramos nestas visitas? A vida é um passeio, e de cada lugar que paramos, guardamos um pouco. O quê as pessoas não vêem é que não é possível apenas ficar na Paz Celestial, ou transpor Muralhas de Chinas. Também faz parte das viagens perder trens e bagagens, disputar táxis com outras pessoas na voadora (ou o roundhouse kick, do Tiaquinóris) e comer coisas que nem sempre queremos. E são justamente essas coisas que fazem as diferentes viagens serem únicas. Vai juntar pacotinhos iguais para quê? Vender na feira?

Sou terapeuta, conselheiro, negociador, office boy, agente de viagens, nutricionista, distribuidor de bebidas e alimentos, além de motorista e pimp (não venham me dizer que vocês não sabiam disso, seus hipócritas!). Imaginem que uma vez, na mesma cidadezinha de seis mil habitantes, uma manta estrelada cobria o céu, a brisa noturna trazia o perfume do verão, e eis que um táma se aproxima de minha paz:

- Minha cueca sumiu...

Véi...

Talvez seja por falta de tentativas realmente efetivas, mas eu não consigo colocar em palavras a intensidade da minha vontade de socá-lo naquele momento.

- !!!!!!! ????? !!!! HAIN??? (Eu-com-isso???)

- Eu não consigo achar a minha cueca. Pode perguntar para a empregada onde ela deixou?

Eu sou um INTÉRPRETE, seus tamagochis dus infernu! Não trabalho no almoxarifado das cuecas!!!

...

Pôxa, gente. Assim não dá... Mas é sério... Para que raios esse pacotinho vai me servir, afinal? Reabri este várias vezes, de verdade. Algumas vezes depois, eu vi: ouvir e entender antes de agir. E foi assim com diversos outros pacotinhos. Vocês acham que vou ligar se me perguntarem sobre cuecas, meias, ou cinta-ligas hoje em dia? Ou se o táma quer comer peixe, cachorro, papagaio? Pois é. Juntei pacotinhos. Ganhei outros, e herdei os fundamentais. Vez ou outra eu reabro alguns deles. Só para ver se irá ser uma pessoa diferente os fechando. Assim mudamos, assim crescemos, e assim também o nosso baú. O efêmero me conforta.