quarta-feira, abril 1

Fanta

Logicamente, estava tonto de sono e cansaço. Sair em viagem de madrugada nunca, nunca! foi uma boa idéia, mas como não era nem para eu estar ali, melhor não tomar parte em reivindicações:

 - O que você acha da gente sair às quatro?

- Às quatro?.. Hum... Eu ACHO que num tem problema não...

- Tá, então a gente sai quatro e meia, pra você não chiar...

- (Úuuuuuuh..... como você é bondoso!...) Nossa, tá ótimo! Estarei às quatro e meia na porta da sua casa.

Escapei a Belo Horizonte sem planejar, sem pretensões, e acabou sendo um longo fim de semana. O mínimo que eu poderia fazer era ser agradecido e político. Já era madrugada de quarta-feira, e no horário combinado, estava no local combinado. A primeira coisa que fiz ao entrar no carro foi chover. E assim chovendo, partimos.

O carro popular sem climatizador permitia que a nossa visão ficasse embaçada permanentemente, e como nos bons velhos tempos, limpávamos o pára-brisa com uma flanela freneticamente, de três em três minutos. A noite estava ainda mais escura com as nuvens de chuva, por isso da direção cautelosa. Fazia força para me manter acordado, e conversávamos de octanagem dos combustíveis. Com os olhos, seguia a lanterna traseira do caminhão que andava a mais ou menos 50 metros de nós.

Distraído, acompanhei os pontos vermelhos dançar para a esquerda e desenhar no ar abstratamente novamente para a direita:

 - Bateu!

Só assim acordei da minha distração, e associei o barulho que ouvi um segundo atrás ao choque entre dois metais. O carro foi desacelerando, o caminhão à nossa frente já estava parado no acostamento, uma nuvem de vapor nos envolvia. Quando quase em repouso, vi passar lentamente o outro caminhão no lado esquerdo, parado, destruído. A cabine estava afundada do lado do motorista. Não havia espaço entre a lataria destroçada e o banco para uma pessoa sentada. Não sabia no quê pensar. Proposital ou não, paramos depois que passamos deste mesmo veículo. Vi escorrer um líquido vermelho no chão, sendo diluído pelas gotas de chuva que caíam, e também pelo escoamento desta mesma água. Nossa intenção era de parar para ajudar, mas vendo isso, ele contornou o acidente e arrancou com o carro: “Sabe o diesel que estava escorrendo?.. Qualquer faísca a gente ia parar no céu, literalmente”. Não sei se ri da piadinha fora de hora, ou do desespero que a hipótese me trouxe.

Depois de alguns minutos em silêncio, tentamos retomar a conversa, mas não foi a mesma coisa. A toda hora, tentava pensar no que aconteceu como algo distante, nunca vai acontecer comigo, repetia para mim várias vezes. Mas a cada caminhão que cruzava por nós na estrada, segundos de tensão me paralisavam, até que o dia clareou, e para a minha tranqüilidade, também a chuva cessou.

O fato é que ele já estava chegando em Belo Horizonte. Enfrentou a noite e a chuva para chegar mais rápido, ao amanhecer. A pressa talvez seria para ver a família, os filhos. Talvez não a tivesse, e queria só descansar, ir à zona da cidade para gastar todo seu dinheiro de rapaz trabalhador. Tomar aquela cerveja às oito da manhã, e depois arrumar um quarto no centro da cidade para dormir até a próxima viagem. Continuar com a sua vida, pô.

Mas talvez ele batesse na mulher e abusasse da filha pré-adolescente. Estava virando a noite no volante porque, como sempre, perdera muito tempo tomando pinga na beira da estrada. Provavelmente estava embriagado, e não viu o outro caminhão invadir a sua faixa.  Não escolheu ser caminhoneiro, teve que sair de sua cidade, pela polícia e inimizades.

Mas não tenho certeza do quê poderia justificar a perda da vida.

O sol não estava mais a vista, mas o dia era claro. O céu bonito, parece que típico desta região. Tomava quase todo o céu um laranja claro, cor de Fanta em camiseta branca. Treze horas depois de iniciar a viagem, finalmente olhava novamente para paisagem familiar. O carro ainda engolia o final da estrada, mas eu não estava cansado de pensar. Pensava no valor que não damos à nossa vida. Tão pouco valor, que temos raiva quando chega um email de auto-ajuda para nos lembrar que a gente precisa dar valor à vida. Eu, por exemplo, tenho ódio, e apago antes de abrir.

Dura o mesmo tanto, na verdade. Um segundo para deletar uma mensagem com trilha sonora de Pachabel e textos duvidosos de Carlos Drummond, um segundo para morrer. Justiça seja dita, o motorista do caminhão, mesmo são, não teria tempo para desviar do choque. A freada brusca em chão molhado até a cessão dos virabrequins durou uma batida de coração. Sem tempo para arrependimentos, sem tempo para despedidas, nem para uma última tragada no cigarro. Ciao. Simples assim.

Tenho tempo de menos. Quero fazer coisas que me fazem bem. Quero estar com quem me quer bem. Não quero gastar este tempo com pessoas e coisas que me cansam, e sim, que me treinam na corrida da vida. Pois treinar é bem diferente de cansar em uma esteira. Deletei do meu celular os números, deixei só os meus contatos. No sentido estrito e primário da palavra, não significando networking. Números só são importantes no Orkut, Facebook, Wayn, Estou Aqui, Cá Estou.com, etc. E ainda assim, estou restringindo. Quero o melhor para mim, e para quem me quer. E faço o possível para não cansar essas pessoas.

Maldito acidente. Me fez emotivo e cansativo. Pode deletar.